Agora nós dois somos um - texto Stella Florence
Estava eu num restaurante com um casal que conhecera há pouco, quando presenciei, entre os dois, o seguinte diálogo:
- Estou com vontade de comer peixe, e você? - ele perguntou.
- Não estou muito a fim. Que tal frango?
- Você sabe que eu não gosto de frango.
- Hum... Topa uma carne? - a mulher sugeriu.
- Não, carne me deixa o estômago pesado
. - Carne magra...
- Não.
- Então, a gente pode pedir uma massa pra quebrar o galho.
- É, uma lasanha, pode ser.
Essa conversa aparentemente banal - que não foi motivada por problemas financeiros - me fez lembrar de uma frase, muito usada para e por casais, frase que me causa calafrios: 'Agora nós dois somos um'.
A idéia de que ao namorar, casar ou juntar nós passamos, imediatamente, a fazer parte do outro é uma das maiores fontes de infelicidade entre casais.
Não, nós não viramos um. Dois continuam sendo dois, com suas individualidades, seus desejos, seus prazeres, seu modo de pensar, de sentir e agir, dois distintos, juntos por opção, não por osmose. Juntos, não misturados.
Lembram daquelas massinhas de modelar da época da escola? Quando a gente pegava uma azul e misturava com outra amarela o que dava? E uma verde com outra vermelha? O que dava? Dava nada. Dava cinza.As massinhas, quando misturadas, quando sovadas uma na outra, perdiam a cor original, viravam uma meleca cinzenta.
É exatamente isso que acontece com um casal quando ele cisma em levar adiante essa história de 'nós dois somos um': os dois acabam virando uma massa cinza. E dá-lhe engorda, dá-lhe depressão, dá-lhe pânico, dá-lhe enxaqueca e mais todas as doenças somáticas juntas para sustentar essa antinatural perda da individualidade.
Eu insisto: nós nunca, nunca deixamos de ser independentes, únicos, livres, vacinados, senhores do nosso prazer e destino. Podemos permitir que uma outra pessoa se misture em nós a ponto de não sabermos mais quem somos, mas creia, isso não é bom, isso não é amor, muito menos prova de amor.
Há casais que se forçam a dormir no mesmo horário, que jamais entram em salas diferentes quando vão ao cinema, que não admitem que o seu amor possa sentir desejo por outras pessoas, que não admitem o próprio desejo por outras pessoas, que não viajam sem a cara metade, que se metem em passeios que detestam como churrasco com pagode, piscina com maionese ou bossa-nova com uísque apenas para não deixar o outro se divertir sozinho. Por que tanta insegurança e mutilação? Pra que? Ah, sim: para ser um!
Quando duas pessoas me dizem 'agora somos um', para mim, isso só significa uma coisa: que elas passaram, cada uma deles, individualmente, a valer o mesmo que meia pessoa. Em vez de ganhar algo, elas perderam quase tudo: perderam metade de si.
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